terça-feira, 25 de maio de 2010

Beautiful Escape: Dungeoneer

Eu nem ia falar sobre este jogo no Nicoisas porque um jogo sobre tortura poderia passar uma impressão ruim. Então decidi falar de Beautiful Escape: Dungeoneer não somente como um jogo, mas como uma experiência pessoal, contando como foi sua concepção, e o que está por trás do conceito.

Desde que comecei a fazer jogos com um pouco mais de cuidado, passei a considerar jogos como uma forma de arte, uma forma de expressão. Ainda que essa idéia possa parecer meio forçada, acho muito plausível: não temos problemas em considerar um desenho, uma música, ou uma narrativa como forma de expressão artística; por que não chamar também de arte uma coisa que junta tudo isso e mais um pouco?

Digo isso só para tentar quebrar um pouco a imagem do jogo eletrônico como uma coisa boba e infantil, principalmente em se tratando de jogos amadores (não comerciais, feitos por uma pessoa só).

Beautiful Escape: Dungeoneer foi um jogo que fiz para um concurso dentro de uma comunidade online de criadores de jogos amadores. Não era um grande concurso, não valia nenhum prêmio, era apenas uma atividade para movimentar a comunidade. Eu gosto desses concursos porque geralmente envolvem um limite de tempo curto, e esse limite tem um efeito mágico sobre mim de eliminar completamente minha preguiça e me motivar a trabalhar até 15 horas por dia (foi meu recorde nesse projeto), sendo que sem esse tipo de incentivo, em condições normais, dificilmente consigo me concentrar por 15 minutos.

Este concurso aconteceu na comunidade RPGMaker.net, na minha opinião a maior e melhor atualmente, e foi batizado de Game Gale 2010:

Game Gale é um concurso de criação de jogos da primavera, cujo objetivo é fazer um jogo em pouco mais de duas semanas! Os jogos serão comentados e avaliados por um painel de juizes. Um tema simples será anunciado quando o concurso começar para garantir um período igual de desenvolvimento para todos os grupos envolvidos. Ainda que seja uma competição, o objetivo principal é apenas se divertir fazendo jogos!

O tema anunciado no dia primeiro de maio foi:

Fuga (da prisão, de uma nave alienígena, do seu emprego entediante, de um relacionamento ruim, qualquer coisa).

Era um tema suficientemente vago para permitir vários tipos de conceitos. O tema me pegou de surpresa. Eu já tinha várias idéias antecipadas, mas nenhuma se encaixava no conceito "Fuga". Por incrível que pareça, minhas idéias originais tinham a ver com jogos mais divertidos, coloridos, leves e dinâmicos (o exato oposto do que acabei fazendo).

Como sempre eu tentei fugir do óbvio, então não podia ser algo como "fuga da prisão", ou "fuga do castelo assombrado", nem nada do tipo. Depois de pensar um pouco, a primeira idéia aceitável que me veio foi "um rato de laboratório tentando fugir do cientista maluco". Por mais inocente que essa idéia fosse, ela já tinha um teor de perversidade, pois há um quê de crueldade no manejo de animais em pesquisas de laboratório (eu mesmo já trabalhei com isso), principalmente em alguns tipos especiais de pesquisa. Então seria algo do tipo "rato foge do laboratório porque não quer mais sofrer maus tratos", e não "porque quer ser livre". Essa idéia durou poucos segundos na minha cabeça, porque a noção de "fugir de maus tratos" rapidamente fez com que o rato virasse homem, de forma que quem estaria fugindo do cientista maluco agora era um ser humano. Acho que o apelo é maior, e humanos como cobaias de laboratório não é uma noção tão absurda. O conceito final do jogo é apenas uma intensificação dessa idéia: a imagem (melhor dizendo, o estereótipo) do cientista frio e cruel rapidamente se transformou (na minha cabeça) em um torturador legítimo, e o jogo seria então sobre pessoas que tentam fugir de um torturador sádico.

Deixo claro que não estou chamando cientistas de torturadores! Só explicando como foi meu fluxo de idéias.

A forma mais óbvia de lidar com isso seria colocando o jogador no lugar da vítima, e o torturador como o vilão do jogo, do qual se deve fugir. Mas como eu sou eu, resolvi fazer o exato inverso: colocar o jogador como torturador, e sua tarefa captar pessoas inocentes e torturá-las.
A partir disso minhas idéias iniciais foram todas relacionadas à jogabilidade: como seriam as torturas, como as torturas seriam pontuadas, quais seriam os fatores numéricos, etc.

Até que me veio a idéia que definiu realmente o conceito do jogo: e se eu investir na humanização do personagem/torturador?

Como amante da psicologia, eu sempre gostei dessa coisa de "ver o mundo através dos olhos de outra pessoa", principalmente quando essa outra pessoa tem uma visão de mundo tão absurdamente diferente da nossa. A verdade é que todas as idéias, todas as ações, por mais "erradas" ou "malignas" que possam ser, sempre fazem sentido dentro do universo daquela pessoa, de forma que tentar entender aquela universo é uma experiência interessante de um ponto de vista psicológico. Penso isso não só no trabalho, mas em filmes ou histórias com personagens muito característicos. Assim eu me atribuí a difícil tarefa de criar um jogo cujo personagem principal fosse um sádico torturador, ao mesmo tempo tentando estabelecer uma espécie de empatia entre o jogador e o personagem, tentando fazer o jogador entender porque o personagem age assim, e quem sabe, de um jeito muito estranho, simpatizar com o personagem.

Neste ponto eu já estava há anos luz das minhas idéias anteriores de fazer um jogo leve e divertido, e meu foco já havia saído da jogabilidade também. Meu objetivo agora era criar um jogo sombrio, psicológico, perturbador. Era proporcionar ao jogador, até onde minhas ferramentas me permitem, a experiência de viver por alguns minutos na pele de um torturador.

Conseguir isso através de um jogo é muito difícil. Não basta ter uma história, ter diálogos. Um jogo precisa de muito mais. Eu investi muito em gráficos, trilha sonora, efeitos sonoros, ambientes, cenas, etc. Acima de tudo eu queria que o jogo tivesse uma cara única, que não fosse parecido a nenhum outro jogo.

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Acho que nem vem ao caso citar todas as escolhas que eu fiz e todos os cuidados que eu tive durante a criação do jogo, porque isso daria um texto dez vezes maior do que este (ainda que eu ache que seria interessante).

Basta dizer que isso tudo deu MUITO trabalho. O prazo de criação do jogo foi de 1 a 16 de maio de 2010. Durante este período, eu basicamente tirei férias do resto da minha vida. Com exceção do meu trabalho (de consultório), eu parei com todas minhas atividades durante essas duas semanas. Acho que eu tive uma média de 10 horas de trabalho por dia (chegando a 15). É meio louco, mas por outro lado eu encarava positivamente o fato de conseguir me dedicar tão intensamente a uma atividade, e fazê-lo com prazer.

Isso teve seu preço. Foram 10h/dia não só fazendo o jogo, mas pesquisando sobre tortura na internet, procurando imagens, vendo filmes, etc. Eu não sou insensível a este tipo de tema. E confesso que era perturbador ficar desenhando cuidadosamente sprites de pessoas gritando, desfiguradas, e coisas do tipo. O processo em si foi intenso, e não só pelo tema mas por tamanho envolvimento, quando acabou tudo eu fiquei alguns dias com aquela sensação de falta de propósito, de desconexão, de "depressão pós-parto", ainda misturada com os sentimentos evocados pelo jogo.

Esses sentimentos pioraram um pouco depois que as pessoas começaram a jogar, e eu percebi que o jogo realmente tinha esse efeito. Cito abaixo alguns dos comentários sobre o jogo (traduzidos por mim):

Eu nunca joguei um jogo de baixa resolução que me deixou tão perturbado antes. (...) O script (...) me dá arrepios na espinha só pela escolha de palavras. LINK

É muito bizarro. Acho que você foi bem sucedido em me fazer sentir intrigado e inquieto ao mesmo tempo. (...) Bom trabalho, ainda me dá arrepios. LINK

Este jogo é sombrio, louco, doentio, e eu adoro... simplesmente porque é bom no que se propõe a fazer. Eu não posso jogar por períodos longos de tempo, contudo. É muito repulsivo às partes boas de minha natureza! LINK

Este é um jogo que transmite bem (o que eu creio que seja) seu ponto central com uma imensa medida de competência: que estes dungeoneers [os torturadores] são simplesmente tão humanos quanto nós. LINK

Misturado com um bom uso de gráficos e som, o jogo te leva a um mundo - distorcido, mas ainda reconhecível - de pessoas tão alienadas e solitárias que a idéia de pessoas violentamente torturando outras apenas para fazer algum tipo de conexão parece horrivelmente plausível. LINK

Acredito que, no final das contas, por mais pirado que eu tenha ficado por uns dias, eu cumpri meu objetivo de transformar este projeto em uma experiência psicológica interessante, não só para mim no processo de criá-lo, mas para o jogador também. Um dos motivos pelos quais escrevo este blog atipicamente autobiográfico é para exorcizar um pouco os resquícios da perturbação.

Quanto ao concurso... ainda que eu acredite que meu jogo tenha sido o melhor dos inscritos, não só conceitual mas tecnicamente, a maioria dos juizes não foi capaz de entender o lado artístico do projeto, e consideraram a abordagem de mau-gosto:

Eu não gosto de filmes de tortura mas as pessoas podem assisti-los passivamente, neste jogo você está ativamente infligindo a tortura, e isso cria uma forte dissonância com o jogador. Seguir pessoas não é divertido para pessoas normais. Deixar pessoas nuas e estuprá-las depois não é divertido para pessoas normais. Assassinar brutalmente pessoas no seu porão não é divertido para pessoas normais. Eu não acho que seja realmente possível gostar deste jogo, ou mesmo se ele foi feito para que as pessoas gostem, muito menos para que admitam a alguém que gostaram. Há alguns gêneros que podem ser adaptados para o formato, mas este não é um deles. LINK

Sinto muito, mas qualquer pessoa que consiga jogar este jogo e não se sentir profundamente perturbada e desligá-lo nesta situação tem problemas. LINK

Algo assim me faz questionar sobre a própria sanidade do criador, ou das pessoas que decidem jogar e gostam. LINK

A verdade é que o tema realmente é controverso, e cada pessoa tem o direito de pensar o que quiser. Mas simplesmente o fato de ter provocado reações tão fortes e variadas significa que meu objetivo foi cumprido.

Se você quer jogar Beautiful Escape: Dungeoneer, clique na imagem abaixo.

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